Negras viajantes Presentes! Améfrica entre viagens e escrevivências

Améfrica entre viagens e escrevivências: como conhecer outros países latinoamericanos me ajudou a encontrar meu tema de pesquisa? por Geinne Moreira

No processo de escrita do meu trabalho de conclusão do curso de Geografia sobre as relações raciais na América Latina, eu fui atravessada por memórias que me levaram para bem antes de quando comecei a refletir sobre minha corporeidade negra diaspórica. Lembrei muito das mulheres negras e nordestinas que mais me dão forças: minha mãe, minha avó, minha irmã e minhas tias. Foram elas que, mesmo não tendo sinalizado sobre como enfrentar o racismo, me ensinaram a ser forte e a lutar, o que eu vejo como uma das maiores referências que tenho sobre (re)exisistência, já que em meio a condições tão duras, além de tudo, me ensinaram o que é o amor. São elas também, as minhas memórias ancestrais e raízes mais profundas, que me dão motivação e força para ocupar e lutar por espaços que historicamente sempre nos foram negados.

Não lembro a primeira vez que falei “eu sou negra”, porém recordo-me profundamente dos impactos do racismo não só na minha trajetória, mas também de outras pessoas negras a minha volta. Junto isso, refletir sobre os processos e os efeitos do racismo, dentre outras coisas, é o que as palavras de Beatriz Nascimento nos descreve:

[…] enfrentar uma história de quase quinhentos anos de resistência à dor, ao sofrimento físico e moral, à sensação de não existir, a prática de ainda não pertencer a uma  sociedade na qual consagrou tudo o que possuía,  oferecendo ainda hoje o resto de si mesmo.

(1974b: 76 apud RATTS, 2006, p. 39).

Nesse sentido, ser negra no contexto latino-americano é fazer parte de uma frente de batalha constante dentro de sociedades racistas que de todas as formas tenta nos negar e segregar, seja aqui no Brasil, ou na Argentina, Peru, Colômbia, etc.

Lembro que em uma das milhares de palestras que eu vi sobre a questão racial, o Professor Silvio Almeida disse que uma pessoa se torna negra através de duas formas de nascimento: um quando nasce e outro quando passa a se questionar sobre os impactos do racismo em sua vida.

Dentro disso, é dolorido perceber, como nos mostra Franz Fanon (2008), as máscaras brancas que somos obrigadas/os a usar para nos inserir na sociedade e do quanto dentro desse processo há uma autonegação da nossa própria existência, já que para que a inserção aconteça, passamos por diversas imposições e assimilações dos padrões da branquitude, que Neusa Souza Santos (1983. p. 23) nos descreve bem em seu livro “Torna-se Negro”.

Por outro lado, a desconstrução desse processo é um dos maiores atos de liberdade, ou seja, é como se fosse um segundo nascimento, já que a partir daí, passamos por um processo de diluição e desconstrução dos efeitos do racismo através da mudança da forma como nos enxergamos e vivenciamos o mundo, mesmo sabendo que a consciência negra não nos torna isentos do racismo estrutural.

Pensando nisso, lembro-me de cada livro, encontro, texto, poema, música, palestra, filme, teatro, dança, coletivo, atos, manifestações e vivências sobre as relações raciais que passaram por mim, principalmente, através da forma como eles continuam me atravessando e me fazendo refletir até hoje, assim como cada viagem, que ao ir de encontro a conhecer um novo lugar, pude conhecer também lugares dentro de mim mesma. Isso ficou ainda mais forte quando viajei para outros países na América do Sul, pois esse autoconhecimento ampliou ainda mais a forma como eu pude vivenciar a dimensão e diversidade cultural Peru, Colômbia e da Bolívia, que foi o país que eu tive a oportunidade de visitar duas vezes.

É por isso que acredito profundamente no que Conceição Evaristo chama de escrevivência(s), que significa “a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra” (2007, p.20), mas que podemos levar para outro tipo de escala, ligada às experiências negras latino-americano, pois apesar de estarmos em múltiplas particularidades e territorialidades, existem fatores que nos unem, principalmente em relação às lutas contra o racismo.

Junto a isso, escolhi estudar o meu trabalho de conclusão de curso, assim como agora no mestrado, sobre a população negra na América Latina, pensando no que Evaristo nos ensina em relação a importância de romper com a passividade da leitura e buscar o movimento da escrita. Para ela, o ato de ler oferece a apreensão do mundo, já o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção de vida: “(…) Em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura dominante, escrever adquire um sentido de insubordinação” (EVARISTO, 200. p. 20 e 21).

Pensando nas escrevivências, não foi diferente em relação a escolher estudar mais especificamente as relações raciais na Colômbia, pois teve ligação direta com uma viagem universitária que fiz em julho de 2013, em que através de um encontro de estudantes de todos os lugares da América Latina e de algumas outras partes do mundo, pude conhecer algumas comunidades indígenas e alguns dos mais importantes Parques Arqueológicos da Bolívia, Peru e Colômbia.

Foi nessa viagem que aprendi a olhar mais de perto e refletir sobre a minha corporeidade negra latino-americana, principalmente pelo fato de que uma das coisas mais marcantes que acontecia, muitas vezes sem que eu dissesse uma palavra, era a tentativa das pessoas de adivinhar de que país eu era e sempre perguntavam: “Você é brasileira ou colombiana?”. Depois de ter escutado isso algumas vezes, percebi o quanto eu não sabia praticamente nada da história da Colômbia, muito menos sobre a população negra de lá, da qual, eu como uma geógrafa em formação na época, ainda mais estudando dentro de uma das mais importantes universidades da América Latina, nunca tinha ouvido falar sobre tais assuntos nas aulas.

Ao voltar da viagem e ao entrar em uma imersão sobre estudos ligados as questões históricas e geográficas dos negros na Colômbia e de outras localidades da América Latina, como por exemplo, no Chile, Venezuela, México, Peru, Argentina e etc.

Dentro disso, pude constatar que mesmo no Chile, houve um processo de branqueamento tão forte que praticamente apagou vestígios da presença africana, mas os dados demonstram que entre 1540 e 1620, havia muito mais negros que brancos (MELLAFE, 1959 apud NASCIMENTO, 2008, p. 143); na Venezuela a população africana chegou a quantidade de 406 mil habitantes e a europeia, de 200 mil; já o México recebeu, entre os períodos de 1519 a 1650, dois terços de todos os africanos que foram trazidos a força para as terras colonizadas pelos espanhóis, onde em 1570, a população africana do México chegou a 20.569, dos quais 2.000 moravam em comunidades livres chamadas cimarrones (BELTRÁN, 1946, p. 111-2 apud NASCIMENTO, 2008, p. 144); em Buenos Aires na Argentina, no século XIX, mais de um terço da população era negra (RAMA, 1967, p. 15 apud NASCIMENTO, 2008, p. 148); em Lima, capital do Peru, antigos censos mostram que em 1640 havia quinze mil negros, o que correspondia praticamente a metade da população (NASCIMENTO, 2008, p. 147) e nas décadas de 1970 havia mais ou menos sessenta mil negros no Peru (CRUZ, 1974 apud NASCIMENTO, 2008, p. 147); na Colômbia, por sua vez, a população negra chegou a somar 80% da população em 1901 (VELASCO, 1966 apud NASCIMENTO, 2008, p. 143). 

Através desses dados, venho pesquisando sobre o tanto de histórias, sociedades, culturas, conhecimentos, tecnologias e múltiplas formas de se organizar vieram junto com as populações africanas, e que por muitas (re)existências a todo tipo de genocídio, nos atravessam até os dias de hoje.

                É extremamente importante lutar pela visibilidade e não apagamento das produções de conhecimentos sobre o tema, não só no contexto da Colômbia, mas de toda a diáspora africana presente dentro do continente Americano, que podemos também chamar de Amefricano, como nos mostra Lélia Gonzalez (1988), ao escrever sobre a “categoria político-cultural Amefricanidade” e a experiência comum da população negra nas Américas, onde a autora destaca a ligação e a importância da nossa ancestralidade através das propostas que buscavam alternativas de organização social, como por exemplo, os quilombos no Brasil, que era muito similar ao que acontecia na Colômbia através dos palenques e em outras partes do continente Americano com os cimarrones, cumbes e maroon societies.

É importante enfatizar, que não se trata de trazer um olhar essencialista e fixa sobre a cultura, mas sim o que Gonzalez, como nos mostra Bairros (2000, p.11), aponta sobre reivindicar que essas experiências são patrimônios culturais históricos vindos da África, onde negras e negros deram continuidade até os dias de hoje em toda a diáspora africana.

Escolher estudar as relações raciais na Colômbia através de algumas experiências de viagens pela América Latina, vai de encontro com a importância de desconstruir/descolonizar a ideia da história e a geografia da exclusão da população negra ao reafirma “a produção de uma imagem de território que remete exclusivamente à colonização pela imigração europeia, oculta a presença negra, apaga a escravidão da história da região e assim autoriza violências diversas” (SANTOS, 2007, p. 15). Com isso, a importância do papel de estudos dentro desse tema, e como reforça Santos (Ibid) , no que diz respeito a novas construções críticas, releituras e representações da realidade, para não reforçar os padrões perversos e violentos impostos pelas estruturas de poder que sustentam o racismo.

Geinne Monteiro

Geinne Monteiro de Souza Guerra

Nordestina, nascida em Juazeiro na Bahia, migrante em São Paulo, viajante do mundo, educadora, mestranda em Geografia Humana (USP), membro-fundadora do Núcleo de Estudantes e Pesquisadoras Negra do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (NEPEN GEO-USP). Atualmente realiza pesquisa ligada às relações raciais da população negra na América Latina.

Referências usadas neste texto

BAIRROS, Luiza. “Lembrando Lélia Gonzalez- 1935-1994”. Revista Afro-Ásia. N°23, 2000. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20990/13591> Acesso: 15/12/2020.

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. Marcos Antônio Alexandre, org. Representações performáticas brasileiras:teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza, 2007.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira- Salvador:

EDUFBA, 2008. p. 194. Disponível em:

<https://www.geledes.org.br/frantz-fanon-pele-negra-mascaras-brancas-download/> Acesso:

15/10/2020.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo brasileiro.

Rio de Janeiro, n°.92/93 (jan./jun.). 1988, p.69-82. Disponível em:

<https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-categoria-polc3adtico-cultural-de-amefricanidade-lelia-gonzales1.pdf> Acesso: 15/12/2020.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Lutas Africanas no Mundo e nas Américas. A Matriz Africana no Mundo. Elisa Larkin Nascimento (org.). São Paulo: Selo Negro, 2008. Sankofa: Matrizes africanas da cultura brasileira. Disponível em:

<https://afrocentricidade.files.wordpress.com/2016/04/a-matriz-africana-no-mundo-colec3a7c3a3o-sankofa.pdf > Acesso: 10/ 12/2020

RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. Imprensa Oficial, São Paulo, 2006. Disponível em: <https://www.imprensaoficial.com.br/

downloads/pdf/projetossociais/eusouatlantica.pdf> Acesso: 16/12/2020.

SANTOS, Renato Emerson dos. Diversidade, espaço e relações étnico-raciais: O negro na Geografia do Brasil. Apresentação. Org. por Renato Emerson dos Santos- Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

SOUZA,   Neusa   Santos.   Torna-se  negro:   As   vicissutudes   da                 identidade         do  Negro

Brasileiro em Ascensão Social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. Coleção Tendências;v.4.

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Texto colaborativo

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