Crônica – “Aonde meus pés me levarem”

Crônica de Valéria Lourenço

Sara levantou-se correndo, com medo de ter despertado tarde demais e perdido o voo, afinal, havia organizado aquela viagem com tanto cuidado durante um ano que não podia acreditar que, por conta de uma falha no despertador do celular, iria ver todos os seus planos correndo entre seus dedos.

O alarme, na verdade, era o anúncio da mensagem recém-enviada por Nando, que, desde a noite anterior, tornara-se seu ex-namorado: “Mulheres que viajam sozinhas só podem ser loucas”, dizia o texto. A primeira reação de Sara foi soltar uma gargalhada bem alta, depois veio o receio… E se ele estivesse certo? Loucura, para muitos, ainda era um sinal de que havia algo errado a ser consertado, fora da norma, do padrão estabelecido pela sociedade. Desvio. Quebra de regras. Mas, e se justamente esse fosse o único jeito feliz de se viver? Bem, Sara não tinha tempo para grandes reflexões, precisava terminar de ajeitar a bagagem e seguir para o aeroporto. 

Ao todo, foram dez horas dentro de uma aeronave cruzando o Atlântico e o Índico entre Brasil e Moçambique. Nunca em sua vida percorrera um caminho tão longo. Preferiu dormir para que o tempo passasse com um pouco mais de velocidade. 

Desembarcando em terras nem assim tão firmes, logo se apressou para chegar ao ponto de onde partiria o machimbombo para seu destino final. Mais seis horas pela estrada e lá estava ela, somente com um leve vestido vermelho para proteger o corpo, pisando as areias finas de uma praia quase deserta. 

Ainda parecia não acreditar no que via. O primeiro contato visual com a imensidão do mar sempre pode surpreender os olhares desavisados ou tão acostumados com paisagens nem assim tão belas. Sara estava em uma espécie de êxtase ao admirar aqueles tantos tons de azuis e a pensar no quanto havia sonhado estar ali.

Com pouco mais de quatro décadas de vida, dois filhos na bagagem e alguns relacionamentos desfeitos, essa era sua primeira viagem sozinha. Quando curiosos perguntavam qual seria o destino dessa “louca aventura”, ela teimava em responder: “Estou indo aonde meus pés me levarem”.  E, assim, escolheu a África como destino. Muito mais do que um pensamento sobre um continente com tanta história, tratava-se de uma ligação marcada pela cor da pele e pelo sentimento de pertencimento àquela terra.

Sentou-se na areia e perdeu a noção do tempo observando o vaivém das ondas do Índico.  Enquanto a noite se avizinhava, iniciou uma caminhada ao longo da praia, tocando, de vez em quando, os pés na água e agradecendo à Iemanjá por aquele momento.

O lugar era muito simples, não havia restaurantes chiques ou grandes casarões por perto, somente pequenas cabanas de palha e um bar que estava aberto naquele momento. Ela decidiu se arriscar, de novo e, adentrou o recinto. Os olhares masculinos a acompanhavam. Curiosos como se não pudessem acreditar no que viam: uma mulher sozinha, corpo úmido, carregava as sandálias nas mãos e parecia não se importar com ninguém ao redor. Caminhou até o balcão, pediu uma cerveja bem gelada e sentou-se à mesa aproveitando a brisa do mar e o som ambiente. Os homens, sempre tão corajosos e seguros de si, chegaram oferecendo “a melhor companhia da noite”. Sara, sempre com um leve sorriso no rosto, balançava a cabeça em tom negativo e dizia que aquela noite pertencia já estava dedicada a alguém muito especial. Em um misto de timidez e coragem, dançou sozinha duas músicas de Oliver Ngoma que embalaram a morna noite. E, finalmente, quando todos correram para perto da praia para acompanhar os poucos fogos de artifício que anunciavam a chegada de mais um novo ano, ela segurou o copo firme entre as duas mãos e levou-o ao céu brindando sua própria existência.

Crônica escrito pela Professora Valéria Lourenço Escritora poeta e professora de língua portuguesa e literaturas no IFCE – Campus Crateús.

Valéria Lourenço - escritora da Crônica - Aonde meus pés me levarem
Valéria Lourenço – escritora da Crônica – Aonde meus pés me levarem


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