Joice Vasconcelos irá contar um pouco sobre a festa do Marambiré do Quilombo do Pacoval – Pará, uma festa negra na Amazônia.
“As festas de Santos são eventos muito comuns e tradicionais em comunidades indígenas e quilombolas da Amazônia. Através dessas festas é possível identificar e vivenciar de perto a influência da cultura africana, indígena e portuguesa nesses territórios tradicionais. Festas como essas são repletas de valores ancestrais, sincretismos e rituais que dizem muito sobre a identidade da região e, principalmente, dessas comunidades que manifestam sua ancestralidade por meio da cultura”
Todos os anos no quilombo do Pacoval, localizado no município de Alenquer, Oeste do Pará, interior da Amazônia, acontece a apresentação da Dança do Marambiré, uma tradição africana que simboliza a identidade e resistência da comunidade, pois a tradição remete a ancestralidade desse povo e as conquistas que eles obtiveram com o Marambiré, como por exemplo, a titulação do território.
Bem, antes de mais nada, vamos entender o que é o Marambiré!
O Marambiré é uma tradição religiosa e sagrada de origem africana, considerado uma festa negra de um ritual africano mais autêntico do interior da Amazônia, uma vez que essa tradição deixada pelos antepassados do quilombo do Pacoval reconta a saga de luta por liberdade dos africanos escravizados na Amazônia. A dança segundo a memória dos mais velhos, era uma forma de agradecer o sucesso obtido com as fugas das fazendas de engenho, por isso é possível encontrar no ritual cânticos que expressem acolhimento, agradecimento e despedida.
Para mais, o Marambiré representa a formação de um reinado africano na figura de seus principais personagens, o Rei e a Rainha de Congo. Além desses, tem-se as Rainhas Auxiliares, os Valsares que representam os Vassalos do Rei, um violonista e o um caixeiro, que acompanham o ritmo marcado dos pandeiros tocados pelos valsares. Ao total são 36 componentes que fazem parte do Marambiré que é apresentado em datas específicas no quilombo do Pacoval, dia 6 e 20 de janeiro.
Segundo manda a tradição, o Marambiré é apresentado todos os anos na comunidade nos dias 6 de janeiro, dia de São Benedito, padroeiro do Marambiré, pois é o santo que atende e realiza as promessas feitas pelos quilombolas do Pacoval que sempre tiveram muita fé no santo, uma vez que São Benedito é tido pela comunidade negra católica como o santo dos pretos. Além desse dia, o Marambiré também é apresentado na festa de São Sebastião, 20 de janeiro, dia em que o ciclo de apresentações do Marambiré se encerra com o ritual do Mar-a-baixo, ritual onde os dançantes do Marambiré vão para beira do rio, sobem em um barco e fazem o percurso de subir e descer o rio dançando e cantando, pois esse trajeto foi feito pelos seus antepassados que na busca por liberdade em encontrar um lugar seguro para se viver, muitas vezes se perdiam pelo caminho e subiam e desciam o rio.
Todos os rituais realizados na dança do Marambiré são lindos, emocionantes e cheios de simbolismo e significados. Presenciar essa tradição é uma experiência única, algo difícil de se traduzir pois vivenciar o Marambiré é vivenciar um mar de sentimentos e emoções, principalmente para quem é negro (a) e tem suas raízes em África.
Em 2020, em virtude da minha pesquisa de TCC que corresponde em investigar a contribuição das mulheres do Pacoval para preservação identitária do quilombo através do Marambiré, tive o privilégio de presenciar esse momento especial e compartilho com vocês um pouco desse momento único.
A comunidade do Pacoval, no dia 6 de janeiro de 2020, realizou o II Festival do Marambiré, um evento cultural, festa de cultura negra, que traz não só a apresentação do Marambiré, mas também outras manifestações culturais do quilombo na Amazônia. Pela parte da manhã, o Marambiré foi apresentado seguindo seu ritual de origem, começando dentro da igreja, depois saindo pelas ruas da comunidade e entrando nas casas das pessoas que estiverem com suas portas abertas para receber o Marambiré. Depois de entrar em algumas casas e dançar, os dançantes do Marambiré sempre vão até as casas dos promesseiros, as pessoas que fizeram promessas a São Benedito e oferecem um almoço ao grupo com objetivo de agradecer a graça alcançada.
Depois de visitar todas as casas dos promesseiros, o Marambiré retorna para o barracão (sede) da comunidade onde será servido um almoço comunitário aos comunitários e visitantes presentes, que acompanharam e participaram desse momento de alegria. Pela parte da tarde o Festival continua sua programação, trazendo as apresentações das demais manifestações culturais da comunidade, que concorrem a premiações. Esse dia foi lindo, especial, cheio de emoções e muita alegria, pois os quilombolas do Pacoval carregam consigo muito felicidade, energia positiva e sorriso no rosto.
Já na festa de São Sebastião, no dia 20 de janeiro, o Marambiré é dançado durante todo o dia para festejar o santinho e celebrar a vida, a liberdade e resistência dos quilombolas que ali vivem. Nesse dia o Marambiré também sai pelas ruas da comunidade, entra nas casas das pessoas para dançar e cantar, mas não há promesseiros, pois, o dia pagações de promessas é na Festa de São Benedito, o santo padroeiro da tradição. Porém, o almoço comunitário é ofertado aos comunitários e ao cordão do Marambiré, que celebram com festa e muita alegria mais um ano de apresentação da tradição.
Para os quilombolas do Pacoval, o Marambiré vai além de uma manifestação cultural, o Marambiré é sinônimo de identidade, resistência e conquistas, pois, por intermédio do Marambiré, a comunidade do Pacoval conquistou a titulação do seu território em 1996, se tornando o segundo quilombo a ser titulado no Brasil depois do território de Boa Vista, em Oriximiná, também no Pará. Ademais, por sua relevância na cultura paraense e amazônica, o Marambiré foi considerado em 19 de março de 2008, Patrimônio Cultural e Artístico do Pará, sendo uma expressão cultural e artística do município de Alenquer, de acordo com a Lei nº 7.113.
Destaco que conhecer o quilombo do Pacoval e vivenciar essa experiência com os comunitários muito me mostrou como é o “viver em comunidade” através dos detalhes e dos valores que a comunidade carrega. Todos no quilombo são muito atenciosos, receptivos, gentis e alegres, com uma alegria que contagia. Também não posso deixar de relatar que presenciar o Marambiré foi muito importante no meu processo de conhecimento sobre a minha identidade enquanto quilombola, pois vivenciar essa tradição me fez sentir em muitos momentos no próprio continente africano mesmo nunca ter conhecido o lugar, mas como os quilombos são a própria África fora do continente, já que são nesses territórios de resistência que estão os frutos de África, vivencia um pouco dos saberes, conhecimentos, costumes e tradições que remetem ao continente.
Não poder participar do Marambiré esse ano é triste, pois assim como os quilombolas do Pacoval passei a respeitar muito a tradição e colocá-la na minha lista de prioridades, uma vez que o sentimento de vínculo e união com a comunidade foi selado e a vontade de contribuir com a perpetuação da tradição também, pois é responsabilidade de pesquisador(a) trazer retornos positivos ao seu público. Espero que esse momento de pandemia possa passar para que possamos novamente dançar, cantar e festejar muitos Marambiré.
Deixo como referência o artigo que eu, minhas professoras e colega construímos nas primeiras pesquisas sobre o Marambiré do Quilombo do Pacoval, no âmbito do Projeto FORMAZ – Formação Socioeconômica da Amazônia, da Universidade Federal do Oeste do Pará.
LEÃO, Andréa Simone Rente; SOUSA, Girlian Silva; QUARESMA, Edilmar Santana; OLIVEIRA, Joice Eliane Vasconcelos de. Marambiré como Patrimônio Cultural e Instrumento de Resistência do Quilombo do Pacoval/Pará.RELACult, Paraná, v. 05, ed. especial, nº 3, mai., 2019. Disponível em: http://periodicos.claec.org/index.php/relacult/article/view/1517/989.
Espero que tenha gostado e que possa se permitir vivenciar o Marambiré – A Festa Negra na Amazônia do Quilombo do Pavocal Pará.
Joice Vasconcelos é cria da Amazônia, nascida e criada no pirão de farinha e banho de rio na pérola do Tapajós – Santarém/PA. É acadêmica quilombola do curso de Gestão Pública e Desenvolvimento Regional, na Univerdade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Apaixonada por ouvir e contar e histórias e pelos estudos sobre território e territorialidades, Joice é pesquisadora daquelas desbravadoras e atualmente segue pesquisando sobre resistência negra na Amazônia, Quilombo do Pacoval, Marambiré e Mulheres quilombolas da Amazônia.
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