Mulher Preta viajante e a solidão na estrada

Fui convidada para uma conversa via Instagram pela Flaviana Alves – @viagenseumcaffe para podemos dialogar sobre o tema – Mulher preta viajante e a solidão na estrada, sendo assim resolvi organizar meus pensamentos e traduzi-los em palavras escritas, então vamos lá.

Acredito que a primeira coisa que precisamos fazer é conseguir entender um pouco mais do significado da palavra SOLIDÃO.

Em uma busca rápida pelo Google encontro a definição que considero muito perspicaz – “A solidão não requer a falta de outras pessoas e geralmente é sentida mesmo em lugares densamente ocupados. Pode ser descrita como a falta de identificação, compreensão ou compaixão.

Quando falamos de viagem acredito permear pela AUSÊNCIA da identificação de alguém igual a mim, da compreensão do outro de mim enquanto mulher e negra e compaixão em compreender o outro, neste caso eu/nós sem invadir, no entanto, o meu/nosso espaço.

Na psicologia podemos encontrar a definição de solidão – superficialmente falando principalmente porque eu não sou psicóloga – como o sentimento de não pertencer ao mundo que nos cerca. Não conseguimos criar vínculos ou nos identificar com os outros. Entre as causas da solidão, estão a dificuldade para se relacionar com outras pessoas, medo de ser julgado e o vazio existencial.

Fazer a escolha de viajar é você quebrar uma barreira do universo que vivemos como uma forma de afrontamento de que o nosso corpo dos quais o sistema capitalista fará questão de trazer à tona a solidão, o que é diferente de um(a) viajante branco/a que viaja em busca da solitude – é o estado de se estar sozinho e afastado das outras pessoas, e geralmente implica numa escolha.

Trazendo todos esses conceitos ou parte deles, porque acredito que os conceitos são bem mais profundos do que eu mencionei acima, compartilhar a minha história que eu tenho certeza de que não é só minha, ela é muito parecida com a de muitas outras mulheres negras.

Eu sou uma viajante desde pequeninha e para nós negras e negros volto a repetir que esse prazer que nos é privado pelo sistema do qual vivemos – O capitalismo. É esse tal capitalismo que faz com que a burguesia nos aprisione dentro de nossas casas, comunidades, do nosso gueto. O trecho da música do RAP 2000 é emblemático em retratar o nosso rompimento de barreiras em descobrir o mundo – “Fui pra zona sul pra conhecer água de coco”, o nome disso é emancipação, e sinceramente? Isso incomoda muita gente.

Eu não acordo todo dia em pensar em incomodar eu saio ao mundo para pertencer, eu sou parte dele, eu sou o mundo, cruzar as fronteiras, atravessar, permear, dançar se sentir solta da zona leste à zona sul, por quaisquer zona e me sentir livre é poder quebrar todos os paradigmas da solidão.

O turismo tem sido mal e uma armadilha para conosco, ele vem vestido de traiçoeiro, e eu posso te explicar o porquê eu penso isso. O turismo nas comunidades tem aumentado absurdamente, porque é chic estar na comunidade só de passagem, porque morar quero ver quem quer morar por lá. É bonito de se ver, mas de se viver deixo à vocês pobres e mortais. Quando começamos a pertencer os lugares que nos foi tirado, ao glamour da zona sul, aos passeios e viagens glamurosos nos é questionado quem somos e de onde viemos. Nos atribuindo todos os estereótipos desse mundo maléfico, está certo isso?

Solidão? Sim! Me sinto solitária quando viajar me é negado, quando a minha cor vem primeiro, meu gênero em segundo e o que o meu conhecimento subestimado. Como se sentir acolhida meio à tantos preconceitos e discriminação. Vista a minha pele por algumas horas, por alguns dias, por algumas viagens que tu irás ver o quão doloso é ser uma mulher negra brasileira pelo mundo.

Na estrada deste mundo e obviamente Brasil, me senti e muitas vezes sinto falta de identificação, compreensão ou compaixão, me sinto solitária! Nem sempre viajo sozinha, mas obviamente a maioria das vezes á faço, por ser mais prática de planejar e ter mais autonomia nas escolhas pré e durante a viagem. Quando éramos pequenas/os e viajávamos para a casa de praia do meu tio e tia, ambos negros, em um condomínio fechado no litoral norte. Éramos os negros do condomínio, os farofeiros a tradicional e literal família negra cheia de crianças e todas as idades a literalmente desfrutar do nosso direito, do nosso poder de pertencimento deste espaço.

Tentavam nos intimidar, mas éramos muitas e muitos não estávamos sós. Mas lembro perfeitamente a nossa felicidade ao ver e ter outra(s) famílias negras pelo condomínio. Era o assunto por dias entre nós, estávamos nos reconhecendo nunca perdendo o medo e muito menos nos sentindo intimidados por estamos lá. Trazíamos conosco nossa história e nossas raízes, nossos pais sempre traziam a discussão racial e a discussão de classe além das salas de aula, o mundo nos ensinava na prática e nossos pais nos davam a munição para enfrentar a vida.

Não éramos chamados para festinhas do condomínio assim como não fazíamos parte do hall de amigos da pracinha, principalmente eu e minhas primas negras, eles/elas não queriam ser nossas/os amigas/os. Nem preciso dizer o porquê, aliás vou dizer: porque somos negras, sim sofríamos racismo, era nós por nós. Nosso quarto, a sala, a varanda era nosso espaço para nossas brincadeiras os olhares matavam mais do que bala de revolver.

Viajar e não encontrar outro viajante igual a mim tem muito significado, porque é encontrar-se literalmente só, é não poder compartilhar felicidades e angústias, é saber que aquela sua piada não fará sentido algum ao não negro. Desde ter a imensa felicidade em poder tomar um banho em uma banheira, desde a primeira vez que tomei um vinho ou na primeira vez que andei de helicóptero enquanto já era a segunda/terceira vez das pessoas que estavam comigo e eu ser a única negra do grupo. Com quem eu vou conversar? Quem veio da mesma realidade que eu? Quem me entende os prazeres da vida que me foram negados?

Vos escrevo como uma expatriada vivendo em outro país, este é o meu terceiro ano vivendo fora do país, meu conhecimento e minhas habilidades são sempre questionadas pelos expatriados, assim como dificilmente consigo ter uma relação de amizade profunda, o nome disso é Solidão.

Desde sempre imperceptivelmente viajo para lugares afro centrado, onde há negros, mas isso não quer dizer que os negros estão viajando, mas são lugares onde a população negra está/vive. Como foi o caso de Salvador, Maranhão, Piaui, Rio de Janeiro, Pernambuco, Trinidad e Tobago onde eu morei por quase 6 meses, Moçambqiue, África do Sul, Swazilandia/Eswatini, Zimbabwe, Zambia, Botswana, Peru, Cuba, Panamá, Bolívia… Onde eu fui literalmente abraçada pela comunidade, não foram os viajantes porque na sua maioria os negros não estavam nessa posição de viajante eles são os locais os que fazem e abrilhantam o turismo, foi onde eu fui abraçada/acolhida. O reconhecimento em verem uma mulher negra viajando é fazer com que elas/eles sintam-se representados pela ocupação deste espaço. Recebo tanto afeto, carinho, presentes físicos que eu só tenho a agradecer.

Mediante a tudo isso preciso . Por todos os lugares do mundo me oferecem orações eu nunca nego, é por esse motivo que estou em pé, por esse motivo que tenho chegado com os meus pés e corpo por todos os lugares do mundo.

Finalizo aqui esse texto com um trecho para poder ilustrar melhor o nosso diálogo – Não mexe comigo – na voz de Maria Bethânia.

“Eu tenho zumbi, besouro o chefe dos tupis Sou tupinambá, tenho erês, caboclo boiadeiro Mãos de cura, morubichabas, cocares, arco-íris Zarabatanas, curarês, flechas e altares. A velocidade da luz no escuro da mata escura O breu o silêncio a espera. Eu tenho jesus, Maria e josé, todos os pajés em minha companhia O menino deus brinca e dorme nos meus sonhos O poeta me contou

Não mexe comigo que eu não ando só Eu não ando só, que eu não ando só Não mexe não”

Música: Não Mexe comigo – cartas de Amor

Artista: Maria Bethania

Compositores: Paulo Cesar Pinheiro

Rede da Flaviana – aproveita e segue:
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Rebecca Alethéia

Idealizadora e Correspondente da Bitonga Travel. Amante de histórias reais, da simplicidade da vida e aventuras, tem como lema de vida a Sankofa – “voltando ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.

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