Quando me perguntam sobre Caraíva-Bahia a e como é o Carnaval lá, me perco entre expressar meus sentimentos ou dar a informação ou os dois e, às vezes, preciso contar um pouco da minha vivência antes de responder.
Me chamo Karla Almeida, tenho 33 anos e a vida inteira ouvi falarem do verão como se fosse um evento de megas proporções, mas nunca entendi de onde vinha esse fascínio.
Foi somente no último ano morando em Caraíva, uma vila de pescadores com mais ou menos mil habitantes na Costa do Descobrimento no sul da Bahia, que entendi mesmo o que de fato é a época do verão brasileiro e entendi todo o frisson envolvido nessa estação mágica.
Sempre curti muito o Carnaval. Sou natural de Belo Horizonte e antigamente o Carnaval lá não era muito festejado, porém nós últimos 5 anos, BH tem recebido cada vez mais foliões do Brasil inteiro para curtir os tradicionais bloquinhos de rua e micaretas que pipocam pela cidade inteira.
Eu, claro, me jogava e dizia que aquele ali era o melhor Carnaval da vida!
A cidade toda fantasiada, crianças, idosos, cachorros, cadeirantes, ricos, pobres, direita, esquerda festejando e sendo feliz como nunca!
Claro que haviam os problemas que marcam grandes aglomerações de pessoas: roubos, furtos, algumas brigas, mas logo tudo era resolvido e a folia seguia.
Aquilo para mim era Carnaval de verdade.
Então em 2018 comecei a mochilar e conheci novos mundos fora da minha bolha.
Foi na Bahia que entendi e aprendi a amar o verão e tudo o que ele representava: agitação, oportunidade de ganhar dinheiro trabalhando na praia, conhecer pessoas novas e diferentes todos os a e muito sol.
Quando me vi dentro do Carnaval de Caraíva – Bahia então, tudo o que eu sabia que amava no Carnaval de BH, deu um salto quântico.
Ali tinha tudo o que tinha em BH mais o bônus de ser perto do mar e do rio!
Fui jogada dentro de uma energia tão grande de interação, música, sol, mar, pessoas desconhecidas que parecem ser da sua família ou amigos de longa data e paixão que percebi que eu não sabia nada de nada do que é um Carnaval numa praia da Bahia!
O Carnaval de 2019 foi, até agora, o melhor da minha vida.
Foi tão mágico, naquele lugar mágico que ainda hoje sinto em mim a alegria que sentia só de acordar todo dia sabendo que logo mais ia ter bloquinho, Netuno gelado, aqueles amigos lindos que fiz ontem e muita Divindade Faraó para dançar.
Continuei morando em Caraíva – Bahia depois do Carnaval ainda nessa aura de paraíso e lugar perfeito, pois é o que aquela vila é: um lugar onde a energia te faz viver e agradecer todos os dias só por respirar aquele ar.
Estava certa de que o Carnaval de 2020 seria ainda melhor pois eu estaria ainda mais integrada a vila, as pessoas e a Bahia em si.
Mas, de forma inesperada, meus sentimentos foram colocados em cheque nos últimos meses.
Recentemente andaram pipocando casos de assédios, agressões, tentativas de estupro e importunação sexual na vila.
Em um momento estávamos curtindo uma festa linda no dia de São Sebastião, santo padroeiro da região, e no outro, ficávamos sabendo que uma amiga nossa havia sido molestada dentro da própria casa.
Recebíamos diariamente noticias de uma menina que quase foi estuprada na praia a luz do dia ou que outra havia conseguido fugir de alguém que tentou puxá-la para o mato no escuro.
E eu ali no meio dessas mulheres, tão próximas que sofreram coisas que poderiam muito bem ter sido comigo.
E pior, estávamos todas ali convivendo com os agressores todo o momento, já que alguns deles eram homens conhecidos da comunidade e a impunidade para esses casos ainda resiste: ninguém tem coragem de depor contra um morador ou um nativo, já que as represálias são fortes.
Ali, estamos todos em terra indigena, sendo meros colonizadores da terra.
Se essas coisas aconteciam diariamente com as mulheres nativas da comunidade, porque deixaria de acontecer com as mulheres que não são?
O medo, a revolta, a raiva e a tristeza se mesclavam com a magia, a alegria e o que significa morar na vila. E estávamos todos tentando entender o que estava acontecendo.
Eu amo Caraíva. Eu amo as pessoas dali. Eu amo como a energia do lugar trabalhou na minha e mudou toda a minha vida.
Participei de um festival com vivências que foram muito importantes e impactantes na minha vida espiritual. Em uma dessas vivências, acessei memórias de infância onde uma pessoa que eu amava me estuprava. Bloqueei essas memórias ao longo da vida num trauma que me seguiu até a vida adulta.
Ali estava eu, com minhas próprias dores a pleno vapor, com amigas queridas sofrendo, sozinha, no meio do verão baiano bem na terra que me ensinou o que é Carnaval, o que é verão e como é delicioso curtir uma festa na Bahia!!
Não consegui completar outro verão ali. Acordava todos os dias querendo pegar o primeiro ônibus para longe, mas ao mesmo tempo com o coração partido de ir embora antes do Carnaval,mas não conseguia pensar em como meu Carnaval seria mágico novamente sabendo que estava tudo errado ali. Que eu estava errada.
Mas não sabendo se errada de achar que ali era o melhor lugar do mundo ou errada de estragada, desmontada mesmo. Precisando de conserto.
Mesmo depois de um ano desconstruindo e renascendo em Caraíva, eu precisava de um conserto novo: do apego que eu estava ao lugar.
Antes do final de janeiro sai de lá e agora estou em Itacaré. A saída foi como um parto difícil: demorou, doeu, trabalhoso e até o último minuto teve dificuldade, mas consegui.
Meu coração acelera cada vez que vejo uma publicação ou comentário de alguem sobre o Carnaval de lá.
Quase fiz as malas duas vezes e voltei.
A vontade de voltar é grande, mas ainda não curei esse sentimento de ter sido puxada de um sonho tão rápido.
Ainda amo Carnaval. Ainda amo Caraíva. E ainda acho que aquele foi o meu melhor Carnaval até hoje.
Mas eu ainda não tenho a resposta para a pergunta.
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